Por que ainda acreditamos no amor romântico?
- Carolina Leles
- 2 de jun.
- 4 min de leitura
"Amar não é olhar um para o outro, é olhar juntos na mesma direção." — Antoine de Saint-Exupéry

Vivemos em uma era marcada pela racionalidade instrumental, pelo avanço das tecnologias, pelas relações fluidas e pela exaustão emocional. Ainda assim, ou talvez justamente por isso, o amor romântico resiste. Em meio a discursos que falam de liberdade afetiva, amores líquidos e autonomia emocional, o imaginário romântico ainda ocupa um lugar simbólico central.
Mas por que, mesmo cientes das falácias que esse ideal pode carregar, continuamos a desejar um amor que nos tire do chão?
A construção histórica do amor romântico
O amor romântico é uma invenção recente do ponto de vista histórico. Durante séculos, os casamentos foram arranjos sociais e econômicos. Foi apenas entre os séculos XVIII e XIX, com o Iluminismo e o Romantismo europeu, que o amor passou a ser considerado um sentimento nobre, digno de ser o fundamento de uniões conjugais. A literatura romântica, os poemas de Goethe, os amores trágicos de Shakespeare, e mais tarde os filmes hollywoodianos, fixaram a ideia de que o verdadeiro amor é arrebatador, exclusivo, eterno e, sobretudo, capaz de redimir a existência humana.
Essa mudança simbólica não ocorreu por acaso: ela acompanhou o surgimento do indivíduo moderno, autônomo, livre para escolher e sonhar. O amor romântico passou a representar não apenas um vínculo afetivo, mas também um projeto existencial de completude. Em um mundo cada vez mais secularizado, onde Deus já não era mais o centro, o amor ocupou o trono simbólico da transcendência.
Amor romântico como estrutura psíquica
Do ponto de vista da psicanálise, o amor romântico é mais do que um comportamento: ele é um dispositivo psíquico. Jacques Lacan propõe que “o amor é dar o que não se tem a alguém que não o é”. Essa afirmação, embora enigmática, revela a natureza ilusória do amor idealizado: amamos não apenas quem o outro é, mas o que ele representa para nós, o que projeta em nosso vazio subjetivo.
Amar romanticamente é, em parte, reencontrar um sentimento originário de fusão, de pertencimento simbiótico, aquilo que Freud descreveu como o retorno ao “sentimento oceânico” vivido na infância. Desejamos essa unidade perdida, buscamos no outro uma promessa de totalidade, como se pudéssemos, enfim, cessar a angústia existencial da incompletude. Por isso, mesmo quando conscientes de que o amor idealizado é inatingível, seguimos desejando-o: porque ele responde a uma falta que é estrutural, não contingente.
O papel cultural e político do amor romântico
Acreditar no amor romântico não é apenas uma questão pessoal ou emocional. Como mostram autores como Eva Illouz e Zygmunt Bauman, o amor é também um produto cultural e político, enraizado em sistemas de poder, gênero e consumo. A indústria cultural, com seus filmes, músicas, novelas, séries e redes sociais, reforça constantemente a ideia de que a felicidade plena está na união com um "alguém especial". O amor vira mercadoria simbólica.
Além disso, o amor romântico tradicionalmente esteve vinculado à ideia de controle e dependência, especialmente para as mulheres, cuja realização subjetiva foi, por séculos, atrelada à conquista e manutenção de uma relação amorosa. Ainda hoje, o amor é frequentemente um espaço onde desigualdades de gênero, expectativas irreais e dinâmicas de poder se reproduzem.
Contudo, essa crítica não nos impede de ver que, ao mesmo tempo, o amor também pode ser território de subversão: de escuta, de cuidado, de construção ética do encontro com o outro. E é aí que reside a chave.
A persistência do desejo: esperança ou ilusão?
Mesmo com todas as críticas, o amor romântico não desaparece. Ele se reinventa. Hoje, muitas pessoas desejam um amor que não seja prisão, mas escolha. Um romantismo que não anule, mas fortaleça a individualidade. Uma intimidade que acolha as vulnerabilidades sem demandar perfeição.
A neurociência já demonstrou que o estado de paixão ativa áreas do cérebro ligadas ao prazer, à recompensa e ao apego (Fisher et al., 2005). Mas o desejo pelo amor vai além do corpo: ele é uma resposta simbólica à nossa condição de seres conscientes da finitude, da solidão e do absurdo da existência. O amor, como diz o filósofo Alain Badiou, é “uma construção da verdade a dois” uma escolha de permanecer no encontro, mesmo diante do real.
E então, por que ainda acreditamos?
Porque no fundo, não buscamos apenas um par, buscamos sentido. O amor romântico, apesar de suas armadilhas, ainda carrega a potência de nos lembrar da beleza do laço, da possibilidade de construir algo que nos transborde. Não se trata de negar as críticas ou romantizar as relações. Trata-se de ressignificar: de transformar o amor idealizado em um amor real, ético e consciente.
Acreditar no amor romântico, hoje, pode ser um ato de coragem, desde que saibamos que o verdadeiro romance está menos nas promessas eternas e mais na disposição diária de construir, cuidar e recomeçar.
Referências
Badiou, A. (2013). Elogio do Amor. Nova Fronteira.
Illouz, E. (2011). O Amor nos Tempos do Capitalismo. Zahar.
Bauman, Z. (2004). Amor Líquido: Sobre a Fragilidade dos Laços Humanos. Zahar.
Lacan, J. (1958). O Seminário – Livro 1. Zahar.
Fisher, H., Aron, A., & Brown, L. L. (2005). Romantic Love: An fMRI Study of a Neural Mechanism for Mate Choice. The Journal of Comparative Neurology.
Perel, E. (2017). O Amor na Era Digital. Objetiva.
Gostou deste conteúdo?
Continue acompanhando o blog para mais artigos sobre bem-estar, comportamento, carreira e desenvolvimento humano.
Porque aprender também é sentir!
Comments